Pedro tocava teclado em uma certa igreja, enquanto que
Eugênio servia como um introdutor, isto é, uma espécie de mordomo dentro da
instituição. Certa noite durante o intervalo que ambos compartilhavam durante
os seus afazeres ministeriais, eles começaram a conversar como de sempre, porém
eles entraram em um tema que nunca antes haviam falado: o HEMA!
************
Pedro:
então, eu sou um aficionado por Star Wars e eu amo as lutas com sabres de luz!
William: eu
também gosto, embora eu não compreenda direito a história.
Eugênio: eu
também gostava das lutas de sabre de luz, porém quando eu comecei a estudar e
praticar HEMA, isto é, Historical European Martial Arts, eu passei a enxergar
um monte de erros nas lutas, erros estes que iriam levar os duelistas para o
seu fim...
Pedro:
então, Eugênio, isso ocorre porque é uma encenação, embora o estilo de luta de
cada trilogia tenha mudado bastante. Na Trilogia Original (Episódios IV, V e
VI) o George Lucas inspirou-se no kendô para efetuar as lutas de sabres de luz.
Nas prequels (Episódios I, II e III) ele inspirou-se nas formas chinesas de se
lutar com armas e nas sequels (Episódios VII, VIII e IX) ele se inspirou... é,
deixa eu pensar...
Eugênio: se
bem me recordo, amigo, foi no kali...
Pedro: isso!
Exato!
William: bem
gente, eu preciso ir...
(após isso, ele levanta-se e sai do local)
Eugênio: sabe
Pedro, eu sei que você treina karatê e é um entendido em artes marciais
nipônicas, porém você deveria estudar HEMA, pois ele é as nossas raízes
ocidentais.
Pedro: sim,
você me falou um pouco sobre HEMA em uma outra ocasião... vocês possuem algum
manual para estudar HEMA?
Eugênio: bom,
normalmente, nós começamos os nossos estudos por um desses mestres, Fiore dei
Liberi, Filipo di Vardi e Joaquim Meyer, eles possuem manuais que são estudados
por todos nós. No momento eu possuo o manual de Fiore, chama-se “Fior di
Bataglia” em italiano medieval...
Pedro: ah,
eu sou louco por esses idiomas medievais, gostaria muito de aprendê-los!
Eugênio: de
fato, são interessantes... então, o Fior di Bataglia é um manual enorme, o mais
vasto de artes marciais do período medieval, para ser mais exato. Ele contém
lutas com bastão, adaga, lança, espada – e devo dizer que são três formas de
esgrima, espada com armadura (que é uma dinâmica), espada com uma mão e sem
escudo...
Pedro: sei,
essa aí é espada com duas mãos, certo?
Eugênio: não,
é na verdade espada com uma mão e sem armadura, e depois disso é quem vem a
espada de duas mãos, exatamente como você falou.
Pedro: ah,
tá...
Eugênio: além
disso, no Fior di Bataglia existe também uma seção que fala sobre como lutar
montando à cavalo...
Pedro:
nossa!
Eugênio: pois
é... e tem também uma parte que fala sobre uma arma chamada acha. Acha em
português, em francês é “hache” e em italiano medieval ela se chama “azza”.
Percebes como a grafia se assemelha?
Pedro: sim,
as pronúncias são parecidas...
Eugênio:
claro, elas são línguas latinas ou que derivam do latim, logo existe essa
similariedade.
Pedro: isso.
Como se parece essa arma, a acha?
Eugênio: bom,
você encontra ela com referência em fantasia medieval, mas com outro nome,
“martelo de batalha ou de guerra”.
Pedro: ah
sim, eu sei qual é!
Eugênio: pois
então, esse nome simplesmente não existe, o nome correto é acha, ao menos em
nosso idioma. Em inglês ela se chama polaxe.
Pedro:
entendo...
Eugênio: a
maior parte do Fior di Bataglia aborda a adaga, afinal ela era uma arma
importantíssima para os cavaleiros, pois era com ela que se matava um
cavaleiro...
Pedro:
claro, e elas eram veladas com facilidade, certo?
Eugênio: não,
pior que não...
Pedro: como
isso?
Eugênio: as adagas
medievais tinham entre 40cm e 60cm de comprimento, impossível velar algo assim.
Olhe para a minha coxa, ela possui cerca de 40cm de extensão...
Pedro: é de
fato impossível velar algo assim...
Eugênio: pois
é... o formato dela, o seu desenho era tal, que ia afinando do cabo até a ponta
de tal modo que permitia ao seu usuário penetrar entre os vãos da armadura de
um cavaleiro e assim mata-lo.
Pedro: poxa!
Eugênio: nós
do HEMA não estudamos apenas como usar as armas, mas também o contexto
histórico delas. Procuramos ler crônicas que falam à respeito do uso delas em
combates.
Pedro: ah
sim.
Eugênio: por
exemplo, como sabemos que as adagas eram utilizadas desse modo, isto é, para
matar cavaleiros? Vou te contar uma história e será rápida, a Batalha de
Bouvines, conhecida como “a batalha que fundou a França”.
Após derrotar João Sem-terras e expulsá-lo da maior parte
da França, o rei da França, Filipe Augusto envolveu-se em uma batalha contra o
imperador romano-germânico Oto, ou Otão, os dois nomes estão corretos. Eles se
enfrentaram em um campo de batalha no extremo norte do Reino da França, o rei
da França se estribavam na sua cavalaria pesada, enquanto que os germânicos se
apoiavam na infantaria pesada.
Começando a batalha, a infantaria pesada germânica
facilmente bateu a infantaria francesa que era formada por camponeses
recrutados às pressas, porém as alas francesas eram da cavalaria e estas
avançaram pelos flancos e deu-se uma situação que normalmente não ocorria em
uma batalha, que era os exércitos misturar-se.
O rei Filipe Augusto estava pessoalmente comandando a ala
direita com os seus cavaleiros e acabou tendo que defrontar-se contra os
germânicos pessoalmente. Quando a infantaria pesada soube que o rei da França
estava ali, em peso foram para cima dele e os seus guardas pessoais não
conseguiram dar conta da pressão e cederam, fazendo com que o rei tivesse que
lutar para ter que viver.
O rei estava montado à cavalo, afinal ele era um cavaleiro.
Pedro:
certo!
Eugênio: então
em dado momento, Filipe Augusto foi derrubado de seu cavalo e os infantes
germânicos neste momento, jogaram as suas armas fora e sacaram as suas adagas.
Através deste exemplo, ficamos sabendo como se usava uma adaga e em qual
momento.
Pedro:
percebi. Interessante essa história toda, explicou perfeitamente bem em qual
contexto se utilizava a adaga!
Eugênio: sim,
e só para saber, como isso tudo terminou, o rei que era um guerreiro valente,
recobrou-se da queda e lidou com os germânicos. Além disso a sua guarda
conseguiu recompor-se e um cinturão defensivo ao redor do rei da França foi
feito. Filipe poderia ter fugido, porém ele continuou no campo de batalha,
diferente do imperador Otão, que atacado pelos cavaleiros da ala esquerda,
viu-se cercado e fugiu, abandonando o seu exército, que fugiu logo atrás...
Pedro:
hehehe!
Eugênio:
infelizmente eu não me recordo a qual senhor, Fiore servia, o manual que ele
criou era a compilação de todo o conhecimento marcial dele, por isso se chama
“Fior di Bataglia”, que em uma tradução literal, quer dizer “a flor da
batalha”, ou “o melhor da batalha”. Eu me lembro apenas que era o marquês de um
dos Estados Centrais da Itália Medieval. E só.
Pedro:
entendi.
Eugênio: sobre
o mestre Filipo di Vardi, ele serviu à mesma família que Fiore também serviu,
porém com uma diferença de quase cem anos. O manual de Fiore certamente
inspirou o manual de Filipo, pois muito do que está no Fior di Bataglia, também
encontra-se no manual de Filipo de Vardi. É quase certo que o manual de um
serviu como base para a construção do outro.
Pedro: ah
sim, então é quase certo...
Eugênio: isso.
Claro, que existem adições dele próprio, por exemplo, lembra do filme Cruzadas?
Pedro: com o
Harold Bloom como o protagonista junto com o Liam Nelson?
Eugênio: esse
filme mesmo!
Pedro: sim,
eu me lembro!
Eugênio:
então, lembra daquele movimento, que o barão de Ibelin, interpretado pelo Liam
Nelson, ensinou para o Baelian?
Pedro:
lembro!
Eugênio:
então, ele se chamava Posta di Falcone, ou Guarda do Falcão. Ele é um movimento
real e que de fato existiu. Ele encontra-se no manual de Filipo de Vardi, ele
não foi inventado para o filme não...
Pedro: dessa
vez falaram a verdade! (risos abafados)
Eugênio: sim,
dessa vez! (risos)
Seja como for, ela é uma “posta” ou guarda própria para
defesa e contra-ataque.
Pedro: ah
sim, afinal as guardas servem para defesa, certo?
Eugênio: não
exatamente meu caro, a palavra “posta” que quer dizer “guarda”, não se refere
ao mesmo uso que se faz nas artes marciais orientais. Por guarda entenda-se,
uma base ou postura de onde parte-se para uma ação, seja ela ofensiva ou
defensiva.
Pedro:
entendi...
Eugênio: então
a Posta di Falcone serve para defender o esgrimista de “ataques vindos de todos
os caminhos”, nas palavras do mestre Filipo de Vardi.
(neste momento, Pedro dá um leve sorriso, bastante
satisfeito)
Eugênio: bom,
estes dois mestres, Fiore e Filipo são italianos e serviram aos mesmos senhores
em um espaço de quase cem anos, mais precisamente, Fiore serviu no início do
século XV e Filipo no final deste mesmo século e início do século XVI. Mas
também existe o mestre Joaquim Meyer, ele era germânico e era do meio do século
XVI. Eu já falei demais sobre HEMA e nós temos um serviço para terminar, você
como tecladista e eu como introdutor.
Pedro: sim,
eu já ia falar sobre isso. Vamos logo mais, os meus minutos de intervalo estão
no fim, mas ainda não acabaram.
Eugênio: ok,
mas independentemente de qual mestre você escolha estudar, eu sempre aconselho
que um iniciante em HEMA estude o tratado de Vegécio, o Epitoma Rei Militari,
pois todo o conteúdo marcial da Idade Média, foi construído em cima dos textos
de Vegécio.
Pedro: e
quem é ele?
Eugênio:
Vegécio? Um historiador romano que escreveu por volta do ano 400 d.C. Em fins
do século IV d.C, o exército romano não estava mais combativo do mesmo modo que
outrora, tanto é verdade que no século V d.C, os bárbaros germânicos tomaram o
Império...
(Pedro sorri neste momento)
Eugênio:
Vegécio tentou evitar a falência total das legiões romanas. Ele tinha acesso
aos escritos de historiadores romanos que infelizmente perderam-se com o passar
dos séculos. Através desses escritos ele conseguiu descrever como funcionava a
Legião Romana em seus tempos áureos, isto é, no século I d.C, nos tempos dos
Doze Césares.
Como recrutar um soldado, como treiná-lo, como marchar e
muitas outras coisas do tipo.
Pedro:
infelizmente eu vou ter que partir, os poucos minutos que nos restavam acabou.
Eugênio:
também era apenas isso o que eu tinha para te dizer. A minha fala findou na
hora certa. O que mais eu falasse seria um desperdício de tempo e saliva. Em
outra ocasião eu trarei alguns dos meus livros para que você os veja e possa
saber para que me serve no estudo do HEMA.
Pedro:
falou!
Eugênio: agora
vamos, nós somos servos imprescindíveis no altar.
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